quinta-feira, 10 de julho de 2008

Butterflies and Hurricanes (Muse)

Desde há muito tempo que tudo estava bem. Desde há muito tempo que a vida lhe corria bem. Até ao dia em que tudo melhorou. Ia trabalhar com um sorriso, olhava o relógio com ansiedade. Não sabia o que se passava, não pensava nisso. Sorria. Quando saía do trabalho, tudo continuava bem, ia ter com os amigos, falava dos novos amigos. Assim ficou durante dias. A sentir-se muito bem. Sem peceber. Há muito tempo que tudo aquilo era algo estranho e distante. Já não se lembrava como era.
Depois os amigos conheceram os amigos. Os amigos gostaram, ele sentiu-se melhor. E foi aí que percebeu, foi aí que se perdeu. Quis fechar os olhos, esquecer. Quis olhar noutro sentido, vislumbrar outros rumos. Não conseguiu. Sentiu-se preso, quis se libertar de desejos que há muito não sentia. Tentava fugir, mas sucediam-se os cafés, os jantares, as noites. Reparou em sorrisos, surpreendeu-se com olhares, apaixonou-se por actos pequenos, vulgares.
Por fim, contou. Sentiu-se estúpido, engasgou-se. "Isso passa." Odiou a fragilidade daquelas palavras, sentiu raiva da felicidade que sentia, da vontade de estar perto. Pensou durante dias como se libertar da raiva, de como recuperar o orgulho. Negou o que sentia. "Isso passa." Ainda o faz, ainda tenta esquecer. Continua a sentir-se um idiota, a odiar a fragilidade dos seus actos, a sentir raiva do que sente. Continua a tentar escapar, a tentar agir como se tudo já tivesse desaparecido. Grita ao mundo que esqueceu, o mundo segreda-lhe que que daqui a pouco vão estar juntos.
Pensa no dia que está a chegar, o dia em que deixarão de estar juntos. Anseia por esse dia. Tem saudades dos dias em que tudo estava bem. Apetece-lhe voltar a agarrar a sua vida, a comandá-la fria e orgulhosamente. Quer voltar aos dias em que que não se perdia nas ruas por onde passa todos os dias. Quer esquecer... mas quer também aquele sorriso, aquele olhar, aquele corpo.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Imagine (John Lennon)

Du'a apaixonou-se. Entre mortes e raptos, destruição e caos, encontrou alguém com quem partilhar os seus medos, alguém com quem podia esquecer o mundo em que vivia. Passou dias a trocar olhares, a marcar encontros secretos, a fugir dos pais. Dias em que esquecia o perigo para durante alguns segundos poder estar com ele, dar-lhe a mão, pensar num futuro juntos.
Bahzan era uma cidade pequena, perto de Mossul, onde as diferenças étnicas e religiosas definiam toda a sociedade. Depressa se descobriu que Du'a se encontrava às escondidas com um rapaz sunita. Proibida pela família de continuar a encontrar-se com um rapaz muçulmano, Du'a fugiu de casa e procurou ajuda na casa de um líder tribal sunita, onde permaneceria durante a noite.
No dia seguinte, um grupo de homens enfurecidos vasculhou a cidade em busca de Du'a. Quando a encontraram, arrastaram-na para a rua e apedrejaram-na. A cada golpe que sofria, Du'a gritava e suplicava por ajuda. Olhava para aqueles que, aos poucos, a matavam e reconheceu familiares seus. Entre a multidão, alguém gritava por ela, tentando-se libertar dos braços que o agarravam e o impediam de a salvar. As lágrimas caiam nos rostos de ambos, enquanto à volta uma multidão assistia à lenta morte de Du'a sem nada fazer. Muitos acenavam a cabeça. Acusavam-na de trair a sua comunidade, de querer se converter ao Islamismo.
Aguentou os golpes até ao limite do seu frágil corpo, agarrando-se a um amor perdido, a uma raiva contra aqueles que a impediam de continuar a viver. Envergonhada, humilhada, revoltada, Du'a fechou os olhos, ouviu por uma última vez os gritos daquele que se debatia para a ir salvar e desistiu. Tinha 17 anos.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

A Long Way Home (Norah Jones)

Saiu tarde. O cigarro fazia-lhe companhia, era a sua única companhia desde há muito tempo. Subiu a Almirante Reis com os olhos no chão. Alguém lhe pediu mortalhas. Para uma ganzinha, disseram. Sorriu e continuou a subir a rua. Viu corpos que jaziam nos cantos, como mortos, ao lado de garrafas vazias. Passou por rostos escurecidos pela noite, por sombras que vasculhavam caixotes do lixo, por vultos que fugiam por ruas estreitas.
Quando chegou ao fim da rua, a escuridão diminuiu, os rostos iluminaram-se. Apenas alguns metros separavam estas duas realidades. Parou e olhou para trás. Qual dos dois mundos seria o seu? Em qual deles se sentia entre iguais?
Continuou o caminho por Arroios. As luzes tornaram-se mais fracas, as sombras reapareceram entre jardins e contentores do lixo. Respirou fundo. Daqui a pouco estaria em casa.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

A Pequena Dor (Rui Veloso)

Sob a luz pálida do velho candeeiro, olhava a Lisboa que há muito o acolhera, mas que ainda não o conseguira entender. Sentado junto à janela, esperava que um relâmpago rompesse o céu e destruisse a aparente imobilidade da cidade. Queria correr as ruas, vasculhar os prédios, trazer de volta o burburinho da multidão.
Ouviu vozes. Depois risos. Depois gargalhadas. Lá fora, o vinho aquecia corpos e conversas. Quis juntar-se a eles, troçar daquela cidade que o apertava e daqueles que lhe roubavam esperança e anular aquela dor pequenina, incómoda, constante. Mas as gargalhadas foram-se afastando até se reduzirem ao mesmo silêncio que o incomodava há dias.
Foi então que decidiu fugir daquelas quatro paredes que o sufocavam. Fugiu para longe, para junto de rostos desconhecidos, para junto de olhares que nada lhe diziam. Deixou que a cidade o corrompesse e transformasse, sentiu-se zonzo e teve medo, mas não permitiu que aquele medo o impedisse de continuar. Fechou os olhos e recordou outros rostos, outros corpos...
Quando acordou, a dor ainda lá estava. Pequena, mas maior. Voltou a fechar os olhos e desejou que a dor desaparecesse.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Only Happy When It Rains (Garbage)

Existem dias que desejamos apagar por completo, pegar numa borracha e voltar a desenhar com outras cores, pressionar a tecla delete até ele se reduzir a um ecran em branco à espera de ser preenchido... Existem dias que por muito que os tentemos apagar, eles voltam a reescrever-se com o mesmo tom inicial, com o mesmo ruído ensurdecedor, com os mesmos rostos sombrios. A borracha está gasta, a tecla delete desapareceu...
Sinto-me injustiçado, desvalorizado, reduzido a um fragmento de mim que não espelha aquilo que realmente sou. Sinto que corro todos os dias, e corro para quê? Para um comboio que perco, para um trabalho que chego atrasado, para uma casa que encontro vazia. Deito-me na cama e lembro-me dos tempos em que não corria, dos tempos em que não perdia o comboio, em que não chegava atrasado, em que chegava a casa e encontrava um sorriso, um ar zangado ou mais uma conversa banal. Lembro-me do descontentamento da minha mãe, dos silêncios do meu pai, das perguntas da minha irmã.
Lembro-me das manhãs de chuva miudinha, do calor que elas me traziam... olho para a lua das noites de Agosto e tremo. Quero de volta os gritos da minha mãe, os silêncios do meu pai, as gargalhadas da minha irmã, o sorriso da minha avó, os olhares daqueles que sempre conheci, quero de volta as tardes de praia com o céu alaranjado, o cheiro das árvores do quintal da minha avó, o sorriso e o bom dia de todos os que passam...
Quero de volta os tempos em que me sentia no sítio certo mas que ansiava por algo melhor, quero de volta os tempos em que acreditava em algo melhor, quero de volta os tempos em que tudo estava bem... mesmo nos dias de chuva...